30 DE JUNHO
58. SANTOS PROTOMÁRTIRES DA IGREJA DE ROMA
Memória
– Vida exemplar no meio do mundo.
– Atitude perante as contradições.
– Apostolado em todas as circunstâncias.
Depois de Jerusalém e de Antioquia, Roma foi o núcleo primitivo cristão mais importante. Muitos cristãos provinham da colônia judaica existente em Roma; os outros vieram do paganismo.
Hoje comemoram-se os cristãos que sofreram a primeira perseguição sob o imperador Nero, depois do incêndio de Roma no ano 64.
I. A FÉ CRISTÃ chegou bem cedo a Roma, que era naqueles tempos o centro do mundo civilizado. Talvez os primeiros seguidores do cristianismo na capital do Império fossem judeus que se tinham convertido em Jerusalém ou em outras cidades da Ásia Menor evangelizadas por São Paulo. Por sua vez, a presença de São Pedro entre eles, por volta do ano 43, veio a significar o fortalecimento definitivo da pequena comunidade romana. O certo é que a fé cristã se difundiu a partir de Roma por muitos lugares do Império.
A paz de que se desfrutava nessa época e a excelente rede de comunicações, que facilitava as viagens e a rápida transmissão das idéias e notícias, foi outro fator que favoreceu a expansão do cristianismo: as vias romanas, que partindo da Urbe chegavam até os mais remotos confins do Império, bem como os navios comerciais que cruzavam regularmente as águas do Mediterrâneo, foram veículos de difusão da boa nova cristã por toda a extensão do mundo romano1.
É difícil descrever o modo como cada qual se convertia ao cristianismo naquela Roma do século I, como aliás é difícil dizê-lo hoje, pois cada conversão é sempre um milagre da graça e da correspondência pessoal. Um elemento decisivo foi sem dúvida a vida exemplar dos cristãos – o bonus odor Christi2 –, que se notava no modo como trabalhavam, na alegria, na caridade, na austeridade de vida e na simpatia humana com que se comportavam com todos. Eram homens e mulheres que procuravam viver plenamente a sua fé no meio dos seus afazeres diários em todos os estratos da sociedade: “Daniel era jovem; José, escravo; Áquila exercia uma profissão manual; a vendedora de púrpura encarregava-se de uma loja; outro era guarda de uma prisão; outro centurião, como Cornélio; outro estava doente, como Timóteo; outro era um escravo fugitivo, como Onésimo. E, no entanto, nada disso foi obstáculo para nenhum deles, e todos brilharam pela sua virtude: homens e mulheres, jovens e velhos, escravos e livres, soldados e civis”3.
Os Atos dos Apóstolos deixaram-nos um maravilhoso testemunho da caridade e da hospitalidade dos cristãos romanos, ao relatarem o modo como acolheram São Paulo quando este chegou preso a Roma. Tendo os irmãos sabido da nossa chegada – diz São Lucas –, saíram ao nosso encontro até o Foro de Ápio e até as Três Tabernas. Ao vê-los, Paulo deu graças a Deus e cobrou ânimo4. O Apóstolo das Gentes sentiu-se confortado por essas demonstrações de caridade fraterna.
Os primeiros cristãos não abandonaram as suas ocupações profissionais ou sociais (coisa que só alguns viriam a fazer, por uma chamada concreta de Deus, passados mais de dois séculos), e consideravam-se parte integrante dessa sociedade da qual se sentiam sal e luz, com as suas vidas e com as suas palavras: “O que a alma é para o corpo, isso são os cristãos para o mundo”5, resumia um escrito dos primeiros tempos.
Nós podemos examinar hoje se, como aqueles primeiros cristãos, damos também bom exemplo a cada instante, a ponto de arrastarmos os outros para Cristo: na temperança, nos gastos, na alegria, no trabalho bem feito, no cumprimento fiel da palavra dada, no modo de vivermos as exigências da justiça com a empresa em que trabalhamos, com os subordinados e com os colegas, na prática das obras de misericórdia, na firmeza com que nunca falamos mal de ninguém...
II. OS PRIMEIROS CRISTÃOS tiveram de enfrentar com muita freqüência graves obstáculos e incompreensões, e em não poucos casos a própria morte, para defenderem o direito de proclamarem a sua fé no Mestre. Hoje celebramos o testemunho dos primeiros mártires romanos, que caíram em conseqüência do incêndio de Roma no ano 646, pois esta catástrofe desencadeou a primeira grande perseguição contra os cristãos. Ao testemunho de São Pedro e São Paulo, cuja festa celebramos ontem, “acrescentou-se o de uma grande multidão de eleitos que, padecendo muitos suplícios e tormentos por inveja, foram o melhor modelo entre nós”, lemos num testemunho vivo recolhido num dos primeiros escritos cristãos, a Carta aos Coríntios do papa São Clemente7.
Os obstáculos e incompreensões que cercaram os que se convertiam à fé nem sempre os levaram ao martírio, mas fizeram-nos experimentar com freqüência a verdade daquelas palavras do Espírito Santo que a Escritura nos transmite: E todos os que aspiram a viver piedosamente em Cristo Jesus sofrerão perseguição8. Muitas vezes essas atitudes dos pagãos contra os seguidores de Cristo provinham daqueles que não podiam suportar a louçania e o resplendor da vida cristã. Noutros casos, os fiéis à nova doutrina eram perseguidos e caluniados simplesmente “por não serem como os outros”, pois tinham o dever de abster-se das manifestações religiosas tradicionais, estreitamente ligadas à vida pública e consideradas provas máximas da fidelidade cívica a Roma e ao Imperador.
É mais do que provável que o Senhor não nos venha a pedir que derramemos o sangue por professarmos e confessarmos a fé, embora devamos ter a certeza de que, se Deus alguma vez o permite, saberemos pedir-lhe e obter dEle a graça necessária para darmos a nossa vida em testemunho do nosso amor por Ele. Mas o que não deixamos de encontrar é a contrariedade sob formas as mais diversas, pois, “estar com Jesus é, certamente, topar com a sua Cruz. Quando nos abandonamos nas mãos de Deus, é freqüente que Ele nos permita saborear a dor, a solidão, as contradições, as calúnias, as difamações, os escárnios, por dentro e por fora: porque quer moldar-nos à sua imagem e semelhança, e tolera também que nos chamem loucos e que nos tomem por néscios [...]. Assim esculpe Jesus as almas dos seus, sem deixar de lhes dar interiormente serenidade e alegria”9.
As calúnias, o fato de vermos que talvez nos fechem as portas no terreno profissional, que os amigos e colegas nos viram as costas, que há no ar palavras displicentes e irônicas a nosso respeito..., são situações que, se o Senhor as permite, nos devem servir para viver a caridade de modo mais heróico, justamente com aqueles que não nos apreciam. Essa atitude é sempre compatível com a auto-defesa justa, sobretudo quando se trata de evitar escândalo ou danos a terceiros.
À parte esses casos, devemos, porém, ver nessas situações uma ocasião de purificarmos os pecados e faltas pessoais, de repararmos pelos pecados alheios e, em última análise, de crescermos nas virtudes e no amor a Deus. Deus quer, por vezes, purificar-nos como se purifica o ouro no cadinho. “O fogo limpa o ouro da sua escória, tornando-o mais autêntico e precioso. O mesmo faz Deus com o servo bom que espera e se mantém constante no meio das tribulações”10.
Se pelo fato de seguirmos Jesus de perto, chocamos com a contradição e com dificuldades, temos de estar especialmente alegres e dar graças ao Senhor, que nos considera dignos de padecer por Ele, como fizeram os Apóstolos: Eles retiraram-se da presença do Conselho, contentes por terem sido dignos de padecer ultrajes pelo nome de Jesus11. Nessa ocasião, os Apóstolos lembraram-se sem dúvida das palavras do Mestre, como nós as meditamos nesta festa dos santos mártires romanos da primeira geração: Bem-aventurados sereis quando vos insultarem e perseguirem, e mentindo disserem contra vós todo o gênero de mal por minha causa. Alegrai-vos e regozijai-vos, porque será grande a vossa recompensa, pois assim foram perseguidos os profetas que vos precederam12.
III. APESAR DAS CALÚNIAS GROSSEIRAS, das infâmias, das perseguições abertas, os nossos primeiros irmãos na fé não deixaram de levar a cabo um proselitismo eficaz, dando a conhecer Cristo, o tesouro que haviam tido a sorte de encontrar. Além disso, o seu comportamento sereno e alegre diante da contradição e da própria morte foi a causa de que muitos encontrassem o Senhor.
O sangue dos mártires foi semente de cristãos13. A própria comunidade romana, depois da morte de tantos homens, mulheres e crianças que deram a vida nesta grande perseguição, continuou adiante mais fortalecida. Anos mais tarde, Tertuliano escrevia: “Somos de ontem e já enchemos o orbe e todos os vossos lugares: as cidades, as ilhas, os povoados, as vilas, as aldeias, o exército, o palácio, o senado, o foro. Só vos deixamos os vossos templos...”14
No nosso próprio âmbito, nas atuais circunstâncias, se sofremos alguma contradição, talvez pequena, por permanecermos firmes na fé, temos de entender que disso só poderá advir um grande bem para todos. É então que mais devemos falar, serenamente, das maravilhas da fé, do imenso dom dos sacramentos, da beleza e dos frutos da castidade bem vivida. Temos de entender que escolhemos “a parte vencedora” neste combate da vida, e também na outra, que nos espera um pouco mais adiante. Nada se pode comparar a esse estar com Cristo. Ainda que nos tirem tudo, ainda que nos atormentem com as calúnias mais vis, se tivermos Jesus Cristo, teremos tudo. E isto deve notar-se até no porte externo, na consciência de sermos em todos os momentos – também nessas circunstâncias – o sal da terra e a luz do mundo, como nos disse o Mestre.
São Justino, referindo-se aos filósofos do seu tempo, afirmava que “tudo o que de bom disseram todos eles, pertence-nos a nós, cristãos, porque nós adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo que procede do próprio Deus, ingênito e inefável; pois Ele, por nosso amor, se fez homem para participar dos nossos sofrimentos e curar-nos”15.
Com a liturgia da Missa, pedimos hoje: Senhor, nosso Deus, que santificastes os começos da Igreja Romana com o sangue abundante dos mártires, concedei-nos que a sua valentia no combate nos infunda o espírito de fortaleza e a santa alegria da vitória16 neste nosso mundo que temos de levar para Ti.
(1) Cfr. J. Orlandis, Historia de la Iglesia, 3ª ed., Palabra, Madrid, 1977, vol. I, pág. 11 e segs.; (2) 2 Cor 2, 15; (3) São João Crisóstomo, Homilias sobre São Marcos, 43, 5; (4) At 28, 15; (5) Epístola a Diogneto, 6, 1; (6) cfr. Tácito, Annales 15, 44; (7) São Clemente Romano, Carta aos Coríntios, 5; (8) 2 Tim 3, 12; (9) Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 301; (10) São Jerônimo Emiliano, Homilia aos seus irmãos de religião, 21-VI-1535; (11) At 5, 41; (12) Mt 5, 11-12; (13) cfr. Tertuliano, Apologético, 50; (14) ib., 37; (15) São Justino, Apologia, 11, 13; (16) Oração coleta da Missa do dia 30 de junho.